segunda-feira, 14 de setembro de 2020

 Antes que acabe o dia:
Carta ao vinte e cinco de julho de dois mil e vinte.


 Clara Anastácia.




25 de Julho de 2020,


Escrevo para única saída possível desta era. Escrevo as minhas irmãs de cor, de território ocupado, reinventado e encantado. Escrevo ao futuro, as filhas, das mães. Do ventre do mundo, escrevo as que nasceram aqui, neste tempo. De um governo fascista que goza da possibilidade de uma pandemia nos obrigar a usar máscaras, de pano, leves e sutis, quase véus a  virginizar bocas. 

Recebo em tom de cobrança meu nome, Anastácia,  porque não me dá outra opção se não a palavra. E faço porque estamos morrendo, porque só nós sabemos o segredo do mundo.


Resolvi hoje comer aipim, mandioca, queria comer algo da terra, fui a feira porque é lá que converso com os meus. Compra feita: mandioca, manjericão roxo e quiabo, “quem come quiabo não pega feitiço”, ouvi uma vez da boca de uma mais velha. vinte e cinco de julho de dois mil e vinte, de 2020.


 2020 nós vamos comer você. 


Leio livros que minha mãe me deixou, cada palavra que escrevo carregam no seu dna memórias de minha mãe. Não escrevo sozinha, Não escrevo apenas com os fantasmas de minhas ancestrais. Tenho escrito com mulheres, algumas muitas nem sabem que me ajudam a escrever, diariamente, compulsivamente escrevo. 

Acúmulo cadernos e estranhamente sei exatamente o que está escrito em cada um deles, tenho nota mental do que me parece bom, do que me parece possível de se tornar bom, do que é ruim mas carrega afeto, do que apenas merece ser descartado e daquilo que realmente considero obras, pequenas conquistas. aquele alegria boa…  Do que foi elaborado, construído por mim. 


Tenho seguido os conselhos de Glória e observado o vento... Diante disso vou encontrando brechas no tempo, para não cair nas ladainhas das páginas em branco, cheias de certezas e falsa humildade, buscando a perfeição. Eu escrevo. 

É possível agora sentir meus dedos coçando, querem algo muito específico, desejam escorregar pelas teclas desse computador de baixíssima qualidade. Todas as vezes que preciso agredir uma tecla para que saia a letra, resmundo mentalmente por não ter um laptop melhor.  É como se meus dedos fossem bailarinas com sapatilhas de segunda mão. Mas eles dançam a cada tropeço de tecla, o texto aparece.


Nós mulheres negras, latino americanas, afro diaspóricas e caribenhas aprendemos a transformar o tropeço em dança. Gostamos de balançar as ancas, de batucar a ponta da caneta na boca, de teclar compulsivamente o delete. 


Querendo que essa tecla faça na vida o que faz na tela. 


Ter medo da própria escrita é temer o movimento das nossas ancas. “quando uma mulher negra se movimenta toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela” já dizia Angela Davis.  Temer o movimento é temer a Exu, senhor do verbo, o próprio azougue. 

Não, não iremos  temer quem nos ensinou a comer, não duvidamos  de quem sabe todos os caminhos. Somos mulheres de Orí, e consultaremos ao Orí nossos destinos. e contaremos os nossos destinos escrevendo. 

Para aquelas que estão perto do fim, saibam que costuraram bem a colcha. E que as mais novas saibam quem nos ensinou a costurar a colcha. Para que não morremos, mesmo depois do barro voltar a terra. Para que tenhamos direito a memória, a saber.

 

Transformando armas em panelas, colocando bocas para mastigar e falar. Ninguém fala melhor do você mesma as suas palavras. E nenhum tempo será melhor para você que o agora.


25/07/2020


Possibilidade de escolha e movimento, encruzilhada, ponto primordial para chegar em algum lugar, não o melhor, mas em algum lugar que se deseja estar. O propósito, o espírito, aquilo que  você é. Escreva.


com saudades,

Anastácia.


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